Rita Lee é o tipo de moça que sempre foi dona de si. Lá pelos idos dos anos 1960, era a única menina de uma banda bem doidinha, cantava com voz doce, usava chapéus de bruxa ocasionalmente e mesmo quando usava vestido de noiva, parecia longe qualquer tipo de resignação, ainda mais a matrimonial. A moça era basicamente o tipo de mulher forte e inteligente o suficiente pra ser sensual sem se resumir a isso, delicada sem ser Poliana, mordaz sem que isso se resumisse a uma transgressão calculada, um ato mais político que outra coisa.
Ainda que, oficialmente, este não seja o primeiro disco “solo” da Rita Lee, é o primeiro sem os Mutantes. Se dúvidas pairavam sobre o futuro da cantora/compositora sem os irmãos Dias Baptista, começaram a ser totalmente desfeitas aqui. Os Mutantes faziam parte do passado e Rita reuniu uma nova banda, o Tutti-Frutti. A Sérgio Luiz Carlini na guitarra, Lee Marcucci no baixo e batera Mamão, Rita, que se ocupou dos teclados neste disco (algo impensável nos seus tempos de Mutantes...), juntou a cilibrina do Éden, a guitarrista Lúcia Turnbull.
Atrás do Porto Tem uma Cidade é tudo isso. E parece continuar o caminho que Os Mutantes pareciam estar traçando, na época em que a moça acabou saindo do grupo pra cantar um caminho próprio. “O que eu quero mesmo/ é por os meus pés no chão”, canta a moça logo na primeira faixa, acompanhada pelo tipo de rock à R&B que acabaria marcando o fim da carreira dos Mutantes – a de verdade, nada desse negócio com a Zélia Duncan, me perdoem – e dominando grande parte do som que era feito nos anos 1970.
A sonoridade da banda é bastante diferente dos Mutantes, mostrando sim que a loira trilhava um novo rumo e bastante independente, inclusive assinando como única compositora várias das faixas. A tecladeira marca o disco, e a instrumentação usada (moderníssima na época) incluía moog, melotron e piano. As duas guitarras convivem muito bem e dão uma sonoridade um pouco mais stoniana do que se ouvia, por exemplo, nos Mutantes. E o baterista Mamão tem um estilo um pouco mais agressivo que Dinho, o que deixa o som do TF um pouco mais pesado.
Fora o tipo de composição cuja complexidade fora introduzida anos antes pela psicodelia, a moça parece ter abandonado grande parte dos climas viajantes e pirações atmosféricas que eram sua marca registrada, junto a Sérgio Dias e Arnaldo Baptista. Atrás do Porto Tem uma Cidade, nesse sentido, é um disco terreno. Cheio de riffs mundanos, batidas palpáveis e baixos rebolantes. Se há algo da época d’Os Mutantes que permaneceu com Rita parece, no entanto, é a sensibilidade pop que transparecia mesmo nas maiores loucuras que ela fazia em conjunto.
Pois Atrás do Porto… é mais um disco de pop rock robusto que um simples trabalho de blues rock, produzindo uma catarse que se pauta pelo produto mas ultrapassa o prazer ingênuo e simples de uma canção de três minutos.
Talvez o mais interessante do disco seja como a produção injete inspiração em qualquer aspecto caricato ou previsível que haja, por vezes, no estilo da música e da banda de Atrás do Porto… Por estranhezas bem-vindas (o zumbido inicial de Ando Jururu ou a presença surpreendente de sintetizadores em boa parte do disco) e um colorido intenso, ele se torna novo, se faz inusitado. Porque atrás do porto não tem só uma cidade: o que tem mesmo é um disco memorável, que entrou sem titubeio pra minha lista de melhores de todos os tempos.